28 agosto 2010

Um novo livro velho


Nesta última sexta-feira 13 de agosto, na abertura da 21ª Bienal do Livro de São Paulo (onde entrei de graça por ser autor de alguns contos em antologias lá à venda), a conhecida editora Martins Fontes lançou a versão traduzida de “A lenda de Sigurd e Gudrún”, no nosso conhecido J. R. R. Tolkien. O volume possui 440 páginas de qualidade, uma capa com fotos de representações norueguesas em madeira, custo de R$44,00 e tradução por Ronald Kyrmse, que já traduziu outras obras do Professor e fez consultoria para os antigos tradutores, uma vez que é um dos fãs nacionais com maior conhecimento e engajamento.
Antes de entrarmos em maiores detalhes técnicos sobre o livro, é importante sabermos o que ele é. “A lenda de Sigurd e Gudrún” é um poema épico, em versos aliterativos, escrito na década de 1930 e que só viu a luz em 2008. Durante todos esses anos, apenas em uma leitura atenta de algumas cartas e notas biográficas saberíamos da existência de tal peça. Agora, mais uma vez, Christopher Tolkien compila, edita e lança uma obra póstuma de seu pai, provando que o Mestre escreveu mais obras enquanto morto do que vivo.
Dessa vez, contudo, uma parte consideravelmente grande do livro se deve ao próprio Christopher, conforme veremos a seguir. Antes disso, faz-se importante saber duas coisas: a primeira, é que “A lenda de Sigurd e Gudrún” trata de uma versão de Tolkien para a saga da maldição do anel dos Nibelungos. Baseando-se mais nas sagas islandesas e nos “Eddas” (tanto em prosa quanto em verso) do que na “Canção dos Nibelungos” alemã, o poema reconta toda a trajetória do ouro de Andvari, do herói matador de dragões Sigurd e de sua viúva Gudrún.
O outro ponto a se saber para melhor compreensão do livro é que Tolkien nunca escreveu um poema chamado “A lenda de Sigurd e Gusrún”. Ele escreveu, sim, dois poemas chamados “A mais longa balada de Sigurd” e “A nova balada de Gudrún”. O primeiro dividido em uma introdução e nove capítulos e o segundo composto de uma peça única.
Com exceção de uma breve nota do tradutor explicando algumas escolhas da tradução e algumas sugestões de pronúncia, o começo do livro é um prefácio de Christopher explicando a origem do texto em si e as idéias do pai sobre a saga dos Nibelungos. Essa discussão se mantém ainda pela introdução do livro, que contém um longo texto feito das palestras do próprio Tolkien sobre as e os “Eddas”. É aí que sabemos que o autor escolheu versão islandesa da lenda pela qualidade literária superior ao conteúdo histórico da versão alemã.
Também somos lembrados de que Tolkien era um profundo admirador de William Morris (de quem muito se fala em sua biografia e algumas de suas cartas, diga-se passagem). Fica claro, a partir daqui, que a obra de Morris não só influenciou “O Silmarillion” e “O senhor dos anéis”, mas também todo o imaginário folclórico e mitológico que foram responsáveis pela criação da “Lenda de Sigurd e Gudrún”. Inclusive, Tolkien fez uso de uma idéia do próprio Morris utilizada no poema “Sigurd, the volsung”, que trata o herói da narrativa como um escolhido do deus Odin para representá-lo enquanto vivo e para salvá-lo depois de morto.
Depois das longas e interessantes explicações, somos finalmente apresentados ao primeiro poema. Aqui se deve fazer uma nota a tradução: a editora manteve o texto original pareado com o texto traduzido. Isso permite que ao leitor fluente em inglês possa não só comparar as duas versões, como possa, mais ainda, desfrutar puramente das palavras de Tolkien. O curioso é notar que Tolkien, constantemente, fica próximo de versos originais islandeses, muitas vezes reescrevendo-os ou até mesmo repetindo-os.
Já o Kyrmse, supracitado tradutor, deixa bem claro qual foi sua escolha ao traduzir o texto. Sua interpretação do poema foi seguir o mais fielmente possível a métrica e a aliteração dos versos, o que é um tanto quanto incomum em nosso país, mas mostra um trabalho cauteloso e exaustivo. Dentro desse limite, vemos que o que foi perdido, mesmo que minimamente, é o conteúdo por trás da história. Isso compromete algo, no fim das contas? Um pouco, talvez, mas é inegável que o poder dramático de Tolkien se manteve intacto em português.
Para aqueles familiarizados com a saga de Sigurd e com poemas épicos, a compreensão do texto se dá sem dificuldade alguma. Tolkien nos conta a história dos Völsungs e de como o último descendente da família, Sigurd, foi eleito pelos deuses de Asgard. Também somos apresentados ao ouro dos Niflüngs e de como esse foi parar nas mãos do herói após o combate com o dragão Fáfnir. A partir daí, a história segue para o encontro com a Valquíria Brynhild (exaustivamente dissecada em obras mundo afora), para a união com Gudrún dos bolsüngs, até o trágico final.
Tolkien narra habilmente, sem acrescentar muito a lenda e ausentando muitas informações que se mostram irrelevantes, ao final. Mais ainda, o autor preenche de beleza e metáfora cada verso e cada estrofe, dando-nos um trabalho finamente lapidado. Contudo, a época da composição do poema, Tolkien sequer imaginava que se tornaria um ícone mundial. Portanto, “A lenda de Sigurd e Gudrún” não é uma peça feita para narrar uma história, ela é feita para expressar uma opinião e um entendimento sobre uma história previamente conhecida, para um público, preferencialmente acadêmico, já familiarizado com os termos e condições propostas pela saga.
Pensando nisso, Christopher faz uma pausa entre o primeiro e o segundo poema, para dar espaço a comentários que analisam algumas expressões utilizadas por seu pai. Explicando versos e estrofes, com base em anotações tardias de Tolkien, Christopher ajuda o leitor leigo a compreender o que, de fato, está acontecendo ao longo da saga. Mostra-se, nessa tarefa, um verdadeiro escritor e, mais ainda, tão versado em línguas e lendas antigas quanto o pai. Todavia, Christopher cai no erro de tratar a obra tal qual o Professor a tratou: ignora-se que nem todos os leitores têm um pleno entendimento do que seja Asgard ou Valhöll, ou de que saibam quem é Odin ou Loki.
Mais ainda, Christopher parte do pressuposto de que todos os consumidores da “Lenda de Sigurd e Gudrún” sejam fãs prévios da Terra-Média (o que, convenhamos, deve ser verdade). Com isso, ele acaba dedicando, sempre que possível alguma comparação entre o poema épico nórdico e a composição imaginária de Tolkien, o que dá um ar frívolo de caça-níquel e enchimento de lingüiça, falando um idioma bem claro.
O livro prossegue com “A nova balada de Gudrún”, com igual tratamento de tradução e de comentários para a história, menos impactante mais ainda assim forte, da grande heroína Gudrún e sua vingança contra todos aqueles que a fizeram sofrer, inclusive pessoas amadas, o que repercute na política e na história do mundo antigo. É interessante notar que, mesmo tratando-se de um poema diferente, ele mantém o mesmo ritmo e a mesma qualidade da primeira parte do livro, o que dá um sentido de sequência e coerência para a narrativa que não encontramos nas fontes originais, por exemplo.
Acabada “A lenda de Sigurd e Gudrun”, encontramos os Apêndices, tão caros a família Tolkien, aparentemente. O primeiro deles trata de uma explicação de Christopher, citando conferências do pai e outros estudos, sobre a origem de alguns elementos da lenda. Sabemos mais sobre o huno Átila (aqui chamado devidamente de Atli) e sobre quem seriam os Nibelungos.
Em seguida, temos um curto poema de Tolkien cuja métrica segue a rima convencional e trata da criação e destruição do mundo, do ponto de vista da mitologia nórdica. Intimamente ligado com “A lenda de Sigurd e Gudrún”, especialmente com o capítulo de introdução do primeiro poema, esse aqui segue a risca o que encontramos no popular poema eddaico chamado “Völuspá”, inclusive seu título parece derivar daí: “A profecia da sibila”. Aliás, uma nota curiosa é que Tolkien manteve todos os títulos em nórdico antigo, um prato cheio para os admiradores de línguas.
Porém, mais felizes ainda ficarão tais admiradores, ao chegar no terceiro e último apêndice para ler dois poemas de Tolkien sobre Atli escritos em inglês arcaico e gótico, respectivamente. Obviamente, Christopher nos dá a tradução dos mesmos, completando assim toda a produção do pai a cerca da mitologia escandinava e centro-européia.
Ao terminar de ler “A lenda de Sigurd e Gudrún”, ficamos com o saldo positivo de ainda sentir conexão com novos escritos de Tolkien. Mais ainda, podemos nos entreter com uma narrativa que diz muito sobre os outros livros dele que amamos. Contudo, mesmo que haja certo interesse na releitura de um autor sobre um tema conhecido, o livro não despertará interesse naqueles que não sejam fãs do autor, e menos ainda em entusiastas das sagas e dos Eddas que não gostem ou não tenham conhecimento do “Senhor dos anéis” e outras obras. Curiosos por poemas épicos ou poesia em geral, também não tirarão tanto proveito assim da obra, uma vez que não é os versos a composição máxima de Tolkien.
Agora, levando-se em conta que muitas fãs da Terra-Média também são fãs de mitologia nórdica e poemas épicos ingleses, fica aqui a dica de completar sua coleção de livros e aumentar seu conhecimento. O livro valerá cada centavo e cada minuto, inclusive para quem se dedicar a escrever uma resenha tão longa quanto o próprio poema, e profissional a ponto de escolher não ser polemicista para chegar a lugar algum.

3 comentários:

Solange Bispo dos Santos disse...

Eu estava com preguiça de ler esse livro, mas depois de sua ótima resenha, estou ansiosa para desfrutar de suas páginas.
Bjs

Ronald Kyrmse disse...

Fico contente que você tenha gostado da minha tradução! Como você perceptivamente observou, deu mesmo muito trabalho. Algumas traduções são uns verdadeiros partos, quando se pretende manter (na medida do possível) sentido, métrica, rima, aliteração ou alguma combinação dos itens acima...

Shirley Edhel disse...

Uma resenha para ser divulgada, pois muita gente tem dúvidas a respeito da obra.
Parabéns!