02 dezembro 2008

Susana e representação da liberdade sexual


Mais uma vez aqui, volto a argumentar qualquer coisa sobre Nárnia. Deve ser para encerrar alguma trilogia sobre o assunto, ou para fechar um ciclo a respeito desse meu súbito re-interesse no mundo de Nárnia. Sou fã da série desde 1999, quando li "A cadeira de prata"(é, li fora de ordem). De lá para cá, misteriosamente, cada vez mais a série de livros despertou meu interesse. Eu a conheci somo um consolo para apaixonados por Tolkien (nesse sentido me frustrei, pois uma série quase nada tem algo em haver com a outra), mas cativado pela escrita simples e personagens caricatos em um mundo paralelo e cristão. Parece hilário, mas esses elementos geralmente eu repugno. Mesmo assim, insisti e lutei contra meus temores, sendo afinal cativado por animais falantes.

Mas, o preconceito com Nárnia não foi só meu. Ao longo de todos esses anos (mais de meio século), a obra de C. S. Lewis foi acusada de racismo, machismo, intolerância religiosa e demais discriminações. Uma das principais delas é a questão da sexualidade. Tal teor, praticamente, é inexistente na obra (apesar da presença de faunos, ninfas e do próprio deus Baco) e parece ser rechaçado, de alguma forma sutil. A principal vítima disso tudo é Suzana Pevensie, a mais velha das irmãs e irmãos Pevensie (aquelas quatro crianças que visitam Nárnia no primeiro livro publicado da série, "O leão, a feiticeira e o guarda-roupa", mais tarde, elas são citadas no "Cavalo e seu menino", mas retornam em "Príncipe Caspian).

No último volume a ser publicado e, concomitantemente, o último volume da cronologia (apesar de ter sido o penúltimo livro da série a ser escrito), vemos toda a destruição de Nárnia por meteoros, serpentes gigantes, pragas e guerras. Após todo esse caos, vemos que vários habitantes de Nárnia, incuindo as crianças da Terra, são levadas por Aslam até seu reino, a verdadeira Nárnia. Claro que, obviamente, se trata do paraíso destinado àqueles que estão com cristo até os dias do juízo final. E, mesmo que nem todas as crianças estivessem lá, elas ainda assim chegam até a verdadeira Nárnia (sim, elas morrem em um acidente de trem e renascem para a vida eterna).

Então, ficamos sabendo que todos aqueles humanos terráqueos filhos de Adão e filhas de Eva que já estiveram em Nárnia, tiveram uma segunda e última chance de voltar para lá, mesmo que o prazo para isso já tivesse sido expirado (como é o caso do Pedro Pevensie, que já estivera em Nárnia antes de crescer, e de Lúcia Pevensie, que já estivera em Nárnia três vezes). Curiosamente, ninguém menciona que o tio André Ketterley também já fora para Nárnia e que, por alguma razão, ele não retornara para lá. A razão pode ser simples, dentre duas possibilidades: C. S. Lewis se esqueceu do detalhe que incluíra esse personagem em Nárnia no volume "O sobrinho do mago" que conta a história de Nárnia mas foi escrito após a última batalha, ou C. S. Lewis não quis valorizar o maligno personagem do feiticeiro que desperta Jadis e abre portais entre mundos através de um 'achado' anel atlante.

Partindo da segunda suposição, devemos interpretar que os maus não heradarão a terra de Nárnia, certo? Algo bem cristão, por assim dizer. Pois bem, acontece que Susana Pevensie também não é levada a Nárnia verdadeira. Ok, tudo bem, ela não morre e continua vivendo em Londres, mas é dito que ela cresceu, virou mulher adulta, se dedicou ao trabalho e a vida social, esquecendo-se de Nárnia como se sua viagem e seu reinado fossem apenas uma brincadeira confusa de sua criança. Agora, vamos refletir sobre isso... Susana foi duas vezes à Nárnia, foi rainha durante anos, conheceu o Papai Noel, conheceu Aslam, participou de guerras mesmo se recusando a matar alguém com o arco e as flechas que ganhara, possuía uma trombeta que foi responsável pela salvação de Nárnia na Guerra da Libertação ao lado de Caspian X contra seu tio Miraz. Como ela poderia ter se esquecido? E mesmo que ela tivesse se esquecido, como Aslam poderia ter se esquecido dela?

A solução que encontrei é triste, mas é possível. Susana foi a única a mostrar alguma paixão, um princípio de sentimento que envolve afeto, admiração e erotização. Fica claro e ao mesmo subentendido que ela nutriu algum interesse por Caspian, durante sua última visita à Nárnia. Ao que, logo após, nunca mais voltou para Nárnia. Susana estava crescendo em Nárnia, na verdade, aprendeu muito lá, passou por ritos de passagens muito simbólicos e importantes, para só depois retornar para a Terra com força o suficiente para se tornar mulher. Para quem leu meus posts anteriores, deve se lembrar que citei que achava que Susana faria diferença na "Última batalha", isso por quê acredito que Jadis reflete os mistérios de Susana e de todas as mulheres. A feiticeira branca, a feiticeira verde, a rainha das neves, a habitantae solitária da pétre Charn, é que revela os processos da terra e da noite. Processos esses que só conseguem ser representados por uma mulher.

Assim como Jadis, ao longo de todas as crônicas em Nárnia, mostrou questões de amadurecimento e de papéis sociais e fisiológicos que uma mulher desempenha ao longo de sua vida, também Susana vivencia e revela essa experiência de tornar-se mulher e abandonar um lado mais próximo das donzelas. Penso, portanto, que o que afastou Susana de voltar para a verdaeira Nárnia, sem pecado e sem passado, foi o fato de que Susana por si só abandonaria Aslam e aproximaria do culto a Jadis (culto esse que ela presenciou junto ao príncipe Caspian, deve-se dizer). E, se em um primeiro post falei sobre a religião (que funde mito e humanidade), pude falar sobre o mito no segundo post para culminar com a humanidade nesse terceiro post. A humanidade de Susana Pevensie, a personagem mais humana de Nárnia e uma excelente mulher de verdade, que não precisaria de Nárnia alguma para ser quem deve ter sido.

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