15 novembro 2008

"O Hobbit": livro problema (?)






Em mais um texto longo sobre algo relacionado a literatura (dessa vez sobre Tolkien, pra variar), resolvi falar tudo o que sempre achei sobre "O hobbit", o primeiro romance completo e publicado de Tolkien. O livro (que chegou ao Brasil só em 1997, mas existia em português desde 62), viu a luz das livrarias inglesas no dia 21 de Setembro de 1937 (equinócio de outono no hemisfério norte e de primavera no hemisfério sul). Coincidentemente, um dia antes do aniversário de Bilbo Baggins (protagonista do livro) e Frodo Baggins (sobrinho de Bilbo e protagonista de uma outra obra).
"O hobbit" conta a história de como o mago Gandalf (sim, aquele) convence o pacato hobbit Bilbo a se juntar em uma aventura com 13 anões (um deles é parente daquele tal Gimli). Sem entender muito bem do que se trata, Bilbo quebra os costumes do Condado (lar de muitos hobbits respeitáveis) e aceita o convite. Bilbo sabe que há algo sobre matar um dragão e recuperar um tesouro que ele roubou dos anões. Bilbo também sabe que se ele sobreviver e ele pode receber uma parte do ouro. Só. Ele não sabia que iria enfrentar trolls e orcs, ou se encontrar com elfos, ou se envolver num guerra entre povos.
Bilbo também não sabia que iria encontrar um anel mágico e lutar contra aranhas gigantes (coisa que seu sobrinho um dia faria, também, em uma outra obra). E é assim que Bilbo se encontra com o sábio Elrond meio-elfo em Valfenda, cruza as montanhas sombrias onde os anões ergueram uma tal de Minas Moria ou as Floresta das Trevas onde um tal de Legolas mora (assim como um Necromante conhecido como Sauron e seus nove cavaleiros negros, dentro de uma torre).
Vejam como toda a história de Bilbo iria levar até a história de Frodo, no "Senhor dos Anéis", certo? Errado (mais ou menos). A começar pelo Anel. É dito que Bilbo, por razão de uma esconhecida força maior, engana a criatura Gollum num antigo sagrado jogo de advinhas (tão respeitado e praticado pelos hobbits), ao que desperta a ira de Gollum. Depois de conseguir fugir das garras do adversário, é dito que Bilbo nada conta sobre seu recém adquirido objeto mágico para Gandalf ou para os seus companheiros anões.
E é aí que se encontra o grande problema. O primeiro deles, na verdade. Lembram que há pouco falei sobre Legolas, Moria e Sauron? Pois bem, nada disso é dito no livro. Apenas quando se lê o Senhor dos Anéis ou se estuda outros textos do Tolkien, é que sabemos sobre isso. Isso não é necessariamente um problema, calro, mas faz parte de um problema maior. "O hobbit" não se passa na Terra-Média. Pôlemico? Bem, quem afirma é o próprio Christopher Tolkien (filho do Homem e autor dos melhores estudos e compilações inéditas do pai).
Explico. "O hobbit" começou em fevereiro de 1930, quando Tolkien corrigia umas provas em Oxford. Um de seus alunos entregou-lhe uma página em branco e Tolkien aproveitou para rascunhar uma frase que estava em sua cabeça desde manhã: "Num buraco no chão vivia um hobbit...". E Tolkien quis saber o que era um hobbit. Para responder a essa pergunta, pelos próximos 4 anos contou as aventuras de Bilbo Baggins para entreter seus filhos e sua esposa nas noites frias e desocupadas. O então pequeno Christopher achava que o pai devia escrever tudo aquilo para não se esquecer. E assim, durante mais 2 anos, tolkien escreveu "O hobbit, ou: lá e de volta outra vez", com nomes, eventos e humors retirados da cultura islandesa.
No ano seguinte, por insistência do amigo C. S. Lewis (o criador de Nárnia), Tolkien mandou o manuscrito para uma editora (Harper-Collins) e publicou sua primeira obra. Tratava-se de uma obra infantil de fantasia, um conto de fadas. Isolada de todas as outras criações, Tolkien apenas salpicou alguns elementos de sua obra principal no "Hobbit". (Devo lembrar-lhes que a orba principal a qual me refiro é "O Silmarillion", conforme expliquei em um post anterior; uma obra que tentaria criar toda uma mitologia para a Inglaterra e consequentemente para os Dias Antigos do mundo todo).
Assim sendo, no "Hobbit", Tolkien citou os Alto-Elfos (Noldor), o Necromante (Sauron), Azog (o capitão orc que destruiu Moria), Elrond e, principalmente, a Pedra Arken: o tesouro mais cobiçado pelos anões (Pedra Arken em inglês antigo é Eorclastnas, um dos nomes que Tolkien deu para as Silmarils, a peça fundamental na qual gira "O Silmarillion"). Então, quando os editores pediram que Tolkien escrevesse mais histórias sobre hobbits, uma vez que o publico pediria, ele resolveu continuar a história a partir desses elementos mais antigos.
Dessa forma, se "O Silmarillion" trata dos Primeiros Dias, "O senhor dos anéis" trata dos Últimos Dias. Um continuaria o outro (Tolkien até mesmo cogitou lançar os dois livos num volume só, mas os editores não quiseram arriscar e Tolkien não conseguiu acabar "O Silmarillion"). Agora, "o hobbit" fazia parte das histórias da Terra-Média, ams apenas como um prólogo que liga uma obra a outra.
Para tanto, Tolkien precisou fazer uma pequena modificação: como o Anel foi parar na mão de Bilbo. Ele não pretendia escrever histórias sobre a Segunda ou Terceira Eras da Terra-Média. Ele se quer cogitava a existência de tal coisa. "O Silmarillion" tratava sobre os dias antigos e só, nada mais. A idéia de continuar a mitologia (até o ponto em que chegou) veio com uma mudança de tom e sentido no "Hobbit". Quem leu (ou vier a ler) "O hobbit", perceberá como a narrativa é inffantile cheia de piadinhas bobas como a origem do golfe ou o pensamento de uma raposa ou as canções jocosas dos elfos. Mesmo a primeira parte do "Senhor dos Anéis" tem esse clima (exceto que os elfos não se embebedam na "Sociedade do Anel"). Conforme as coisas crescem e a ameaça se torna real, o humor das obras fica mais sombrio e sério.
Até no "Hobbit", quando uma batalha é travada por mesquinharia e personagens morrem. Mas, até esse momento, todo o livro deveria ser alegre e inocente. Deveria, mas não o é. Onde? No momento em que Bilbo se apossa no Anel. Por quê? Por que ali vemos a influência dos contos antigos da Primeira Era e os presságios de como acabarão a Terceira Era. Sauron age nas ganâncias de Bilbo e de Gollum. E como já devo ter dito, nem sempre foi assim.
Quando Tolkien releu "O hobbit" para um nova edição, antes do lançamento do "Senhor dos Anéis", ele precisou se conter para não reescrever o livro todo (para uma terceira edição em 47)! Por sorte, ele apenas modificou o capítulo 5, cuja idéia inicial era a seguinte: Bilbo, perdido na escuridão da caverna dos orcs, encontra a criatura Gollum, com quem joga advinhas para passar o tempo. Como Bilbo ganha honestamente no jogo, Gollum o leva até a saída da caverna e (pasmem!) lhe dá de presente um anel mágico que o deixa invisível. Bilbo se despede jurando visitar o novo amigo um dia...
Imagino que agora tudo começa a ficar claro. Quando Tolkien escreveu "O hobbit", ele não imaginava uma Guerra do Anel, um rei caído de Gondor, uma traição do Mago Branco ou uma partida dos elfos de volta para Valinor. Da mesma forma, quando Tolkien escreveu "O Senhor dos Anéis", ele não ligou muito para explicar sobre relógios, golfe, trolls falantes, elfos festeiros, gigantes de pedra, animais falantes, a Pedra Arken ou mesmo os próprios hobbits. Claro, que para ("quase") tudo isso foi encontrado uma solução. Mas, tais soluções é que geram tantos problemas.
E que problemas! A Terra-Média não tem gigantes, mas quem são aqueles gigantes de pedra? Alguns vão dizer que são as montanhas vistas contra uma tempestade, mas Tolkien lhes dá movimentos e feições. PODEM SER trolls, uma vez trolls que são corrupções de ents e ents PODEM TER SIDO chamados de gigantes verdes no início do "Senhor dos anéis". E, falando em trolls, os trolls falantes e pensantes no "Hobbit" PODEM SER olog-hai, ou meio-trolls. Entendem a dificuldade? E tem mais...
A pedra Arken não era uma Silmaril (ponto, não se discute mais). Assim como os elfos bebrem, cantarem e rirem demasiadamente se trata apenas de como Bilbo os interpretou ao escrever seu livro (uma solução simples: considere "O hobbit" e "O senhor dos anéis" como uma obra narrada por Bilbo, Frodo e Sam). E, falando nos hobbits, de onde eles vieram? Ah, DEVE TER SIDO uma transformação dos humanos que viviam as margens dos rios no norte.
Com tantas diferenças entre uma obra e outra, fica fácil entender por que muitos não consideram "O hobbit" como fazendo parte dos contos da Terra-Média. Agora, com basse nisso, é curioso pensar que o único livro sobre a Terra-Média escrito e completado pelo próprio punho do tolkien, espontâneamente (ou seja, sem cobrança ou pedido da editora e sem ser editado póstumamente) seja "O hobbit": o único livro de Tolkien sobre a Terra-Média que não trata sobre a Terra-Média em si, de verdade.
Para maiores esclarecimentos, consultem os dois volumes do "The history of the Hobbit" (1: Mr. Baggins & 2: Return to Bag-End) do autorJohn D. Rateliff. Esse livro foi publicado em junho de 2007, mas não chamou a atenção devido ao fato de que no mesmo ano o Christopher Tolkien editava uma obra inédita do pai ("Children of Húrin"). De qualquer forma, esse livro foi encomendado pelo próprio Christopher na década de 80. Naqueles tempos, Christopher estava ocupado coletando, editando e publicando a série "History of Middle-Earth" (conforme expliquei no outro post, uma série de trabalhos e versões abandonados por Tolkien) e ele considerava que os materiais a cerca do "Hobbit" não se encaixavam na série HoME. Antes do lançamento, contudo, Christopher verificou a aprovou todo o conteúdo de esboços, desenhos, rascunhos, notas, versões alternativas e extensões abandonadas do "Hobbit" contidas nos dois volumes de John D. Rateliff. E assim acaba, para quem conseguiu ler até aqui, esse tópico cheio de informações 'inúteis' mas de grande interesse para os admiradores da obra de Tolkien (assim imagino), pois "tudo está tão bem quando acaba melhor", de acordo com o senhor Bilbo.

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