29 novembro 2008

Uma história contada pelos perdedores









Muito há para se dizer sobre Nárnia. Podemos enumerar algumas curiosidades, ou podemos tratar de sua história e geopolítica. Podemos até refletir sobre suas influências, mas acredito que o que realmente é mais significativo na obra de C. S. Lewis seja o teor religioso presente em seus livros. O conteúdo cristão é tão presente, que se torna quase impossível pisar em Nárnia no cinema ou em casa e não perceber que Aslam é uma figuração de Jesus Cristo, as quatro crianças são como os quatro apóstolos evangelizadores e a Feiticeira Jadis como Satanás, por exemplo.







Mas, levando-se em conta que Lewis abandonou o ateísmo e se tornou evangélico graças a uma conversa com Tolkien (que na verdade era católico), ele não só recontou os mitos bíblicos como os recontou do ponto de vista dos ganhadores (como sempre aconteceu ao longo da história). Dessa forma, questiono: como seriam as "Crônicas de Nárnia" do ponto de vista dos pagãos que adoram o deus Baco, o deus Rio, as ninfas, os faunos e as profecias nas estrelas? O as guerras contra os narnianos e os arquelanos, do ponto de vista dos mouros idólatras da Calormânia? E ainda, como sobreviveram os cultuadores dos mistérios sombrios da demônia das neves chamada de Jadis? Sem contar os romanos conquistadores de terras e caçadores de cristãos que habitam Telmar.







Quando Lewis escreveu a primeira crônica em 1949, "O leão, a feiticeira e o guarda-roupa" de 1950, ele não pretendia fazer uma série de livros. Sua intensão era apenas fazer uma alegoria do evangelho para crianças, usando-se de mundos de fantasia. O nome surgiu de uma cidade italiana, mas também pode significar "contos profundos" em quênia, uma língua criada por Tolkien (que detestou o livro e quase convenceu Lewis do mesmo). Uma vez que já estamos em terreno italiano mesmo, Lewis resolveu se apoderar da mitologia greco-romana para povoar seu mundo com centauros, minotauros, faunos e ninfas. As crianças que visitaram Nárnia de fato visitaram sua casa durante a segunda guerra mundial, mas tinham outros nomes. Depois disso, foi só incluir um leão e uma feiticeira com nomes em persa (significando "leão" e "feiticeira").






Só no ano seguinte, quando Lewis deu início a um livro chamado "Return to Narnia" (mais tarde publicado como "Príncipe Caspian") é que uma série foi planejada. Foi o amigo Roger Lancelyn Green quem sugeriu chamar a série de "Crônicas de Nárnia" (uma sugestão muito bem aceita por Lewis). Assim, de 1950 até 1956, uma vez por ano as crianças eram presenteadas com algum livro novo sobre Nárnia e sobre Aslam (o único personagem que aparece em todas as histórias). Uma vez que a ordem publicada é diferente da ordem em que foram escritos, para explicar melhor meu ponto sobre as guerras santas de Nárnia, vou usar a ordem em que se desenvolve a história, ok?






De acordo com o "Sobrinho do mago", foi no ano 1 de Nárnia, quando Aslam criou todas as paisagens e habitantes daquele reino, que a feiticeira Jadis foi trazida de seu mundo de pedra chamado Charn através de anéis atlantes de alguns humanos da Terra (o professor Diggory). Até então, não havia religião alguma, apenas alguns deuses da terra e Aslam. Enquanto muitos habitantes pareciam apenas festejar e dançar com os deuses (como ocorre na tradições familiares pagãs da Itália) o culto de outros habitantes realmente passou a ser para com Aslam. Jadis ainda não desenpenhava nenhum papel importante nesse momento. Vemos aí que, se para os cristãos, esse livro trata da Criação, se ele tivesse sido escrito or pagãos, ele trataria daquele momento em que os imperadores cristãos de Roma permitiam cultos a Isis e Mitra em suas cidades, ou quando os druidas irlandeses toleravam as igrejas católicas que eram erguidas para adorar mais um outros deus. É um momento de paz e convivência como desejamos hoje.






Então o tempo passa, a Arquelândia é fundada, as Ilhas Solitárias são incorporadas a Nárnia e a rainha Jadis retorna em 898, para dar início ao longo inverno (que foi do ano 900 ao ano 1000, quando quatro crianças entraram por um guarda-roupa e se tornaram os reis de Nárnia). "O leão, a feiticeira e o guarda-roupa" se trata, na verdade, da morte e do renascimento de um deus. Para um cristão, essa é a palavra dos evangelhos, mas se a história tivesse sido contada pelos pagãos, provavelmente seria dito algo como: 'o inverno representa aquele período mítico em que a deusa (Jadis?) está enlutada pela morte de seu consorte (Aslam) ao mesmo tempo em que espera o nascimento de uma nova esperança em seu ventre (o Aslam reformado após a conversa e o sacrifício junto a Jadis), quando a primavera retorna, imitando os ciclos da terra das plantas que secam quando o sol se afasta e das flores que renascem quando o sol se fortalece'.





Uma nota rápida e importante, o monte de Aslam, onde magia antiga e profunda é feita, onde runas sobre uma mesa contam histórias de Nárnia e marcam a morte e o renascimento do grande leão Aslam, é chamado Arslan Tash ("leão de pedra" em turco). No nosso mundo real da Terra, esse lugar é um sítio arqueológico onde se investiga sobe Lillith, a primeira mulher anterior a Eva que mais tarde se tornou um demônio e a grande inspiração para Jadis. Curioso, não é? E questão dos nomes turcos voltará mais adiante, garanto.






Parece esquisito olhar sob essa ótica? Talvez não seja tanto se pensarmos que muitos mitos se repetem nas mais diversas culturas e que muitos costumes e símbolos foram incorporados pela Igreja Católica quando levou sua palavra a populações pagãs, obrigando-os a aceitarem-na como vedadeira. Esse momento histórico pode ser visto perfeitamente em "Príncipe Caspian", quando vemos Telmar tomando todas as terras de Nárnia e apagando as lendas narnianas (ou, Roma conquistando terrenos e convertendo todos os pagãos). Então, concluo que esse processo iniciado no ano 1, quando 'seguidores de Aslam' e 'seguidores dos deuses' conviviam juntos, chegou a um conflito no ano 1998, quando os 'seguidores de ninguém' caçaram e desmereceram os 'seguidores de Aslam e dos deus' (notem como em Nárnia havia uma integração do deus Aslam junto com os outros deuses da terra, semelhante a forma como os druidas se comportaram na Irlanda). Claro que o rei Caspian X mudaria o rumo dessa situação em 2303, mas algo muito interessante ocorre nessa época.






Durante a chamada "Guerra da libertação", Caspian X descobre que ainda existem lobisomens, feiticeiras e anões que cultuam Jadis. Não é interessante que Jadis tenha um culto? Não é interessante que seus cultuadores fossems eres deformados e habitantes do submundo? Vemos aqui, então, que "Príncipe Caspian" poderia ter sido contada por cristãos (como foi), por pagãos (como razoavelmente foi) e por satanistas (como Lewis jamais cogitaria). O satanismo é uma religião como qualquer outra e merece respeito e não estigma. Não vou entrar no mérito da questão de como é o satanismo real, mas em Nárnia podemos conjecturar algumas coisas.






O culto a Jadis, provavelmente, pregava o poder de realizar desejos e necessidades básicas, encarando todo ser como o animal que realmente é. Além disso, fica claro que os cultuadores de Jadis são aqueles que divinizaram uma figura histórica (tal qual os egípcios faziam). Mais ainda, os cultuadores de Jadis eram de alguma forma descriminados pela sociedade em que viviam e se recolhiam para os recônditos mais ermos do reino de Nárnia. Portanto, creio que se "Príncipe Caspian" fosse contata pelos maiores perdedores da história (mais do que os narnianos escondidos ou os telmarinos derrotados), veríamos uma história sobre grupos pequenos de excluídos tentando se aliar aos vizinhos anrnianos, enquanto encontravam uma forma de impedir o crescimento demasiado do império Telmar (em pleno auge de seu verão bélico) através do desvendamento dos mistério de Jadis: onde uma criatura pequena e mortal deixa sua existência de solidão e alcança glórias divinas.





Bem diferente do que lemos no livro ou vimos no filme, não é? Talvez Lewis tenha deixado essa margens interpretativas propositalmente, talvez não. O fato é que podemos entender qualquer história sob os mais diferentes pontos de vista. Claro, que em alguns momentos fica um pouco mais difícil enxergar Nárnia sem ser pelo cristianismo, por exemplo: "A viagem do Peregrino da Alvorada", no qual Lúcia, Edmundo e o primo Eustáquio viajam pelas Ilhas Solitárias ao lado do rei Caspian X e do rato solado Ripchip, 3 anos depois da Guerra da Libertação. Esse livro mal trata sobre conflitos religiosos, focando-se quase que unicamente no mistério do batismo e do sacrifício (de acordo com interpretações cristãs, é claro). Eu até poderia indicar como os ritos pagãos de apresentação de uma criança aos deuses ou os ritos de iniciação em um sacerdócio pagão se assemelham a essa realidade do batismo, mas seria chover no molhado e fugiria do tema. Além do fato de que já foi dito o quanto as religiões se misturaram e se assemelharam ao longo dos tempos. E, um último bom motivo para não se aprofundar nessa questão é que muito disso já pode ser entendido no culto a Jadis (está bem, eu assumo, li o livro há tanto tempo que mal me lembro dele).





A história continua com o casamento de Caspian X em 2310 e o desaparecimento de seu filho Rillian em 2345 (mesmo ano da morte de sua esposa). Mas é só 11 anos depois que os Filhos de Adão e as filhas de Eva (nomes dados as crianças terráqueas) voltam para Nárnia. Essa história é narrada em "A cadeira de prata" (que poderia ter sido chamada de "Terras desoladas e selvagens" ou "Sob Nárnia"), um dos poucos sem a participação de criança alguma Pevensie. E esse seria outro livro a tratar muito pouco sobre conflitos religiosos em Nánia se não fosse por alguns detalhes próximos da conclusão da aventura.





Apesar da personagem Jill se preocupar em achar os sinais que Aslam dá para ela (par encontrar e salvar o príncipe Rillian), o momento mais importante de toda a história é quando descobrimos através de gnomos que habitam o submundo de Nárnia (onde a noite é eterna e tudo é novidade) que há um Pai Tempo faminto girando as rodas do mundo. Nárnia será extinta (como se confirma mais adiante na série). Não bastasse essa figura saturnina de um Chronnos, somos apresentados a um Feiticeira Verde. Não são poucos os boatos e referências que sugerem que a Feiticeira Verde e a Feiticeira Branca sejam a mesma pessoa. Teria Jadis trocado as neves pelas festividades de outono (conforme se vê na "Cadeira de prata")? Jadis torna a habitar o submundo e as beiras do abismo, sendo seguida por criaturas desprezadas planeja atacar Nárnia por baixo. Tal qual Jadis já enfrentara outros reinos de homens, a Feiticeira Verde ludibria Rllian como um Satanás.





A Feiticeira Verde, figura que parece amar música e comida, veste as cores da primavera mas fala sobre o outono, estações que circulam ao redor do verão, quando o deus sol se mostra no ápice. Primavera e outono, respectivamente, também são estações destinadas as figura divinas das donzelas em flor da idade (quando sua sexualidade desabrocha e seu encanto se torna mais poderoso) ao mesmo tempo que os frutos nascem (como as donzelas que engravidam para se tornarem divindades maternas). Seria a presença do Pai Tempo um indicativo de mudanças? Afinal, primeiro houve a divindade rainha Jadis e depois a divindade donzela da Feiticeira Verde. A ordem das sazonalidades do mundo poderia estar invertida e esquisita devido a influência de Caspian e Rillian em Nárnia. Um mundo natural governado por homens foge ao controle e fica sob um controle não-natural, muitas vezes. Não é à toa que Nárnia iria acabar em breve: os cultos de outono ficavam guardados para populações escondidas em cavernas e florestas, enquanto o cristianismo de um império apra Aslam era clamado aos quatro cantos do reino.





Mais do que a vida do cristão semeando sua entrada no céu contra as tentações de Satanás, "A cadeira de prata" poderia se tratar de um apelo ambientalista as religiões que desconectam o home de sua natureza animal. A força do mundo é muito maior que qualquer coroa ou estandarte, Jadis mostrou isso uma vez e tentou mostrar de novo. Falhou. E assim chegamos aos momentos finais de Nárnia, como "A última abtalha" (também, o último livro a ser publicado na série).





Partindo as profecias bíblicas do apóstolo João na prisão, quando as religiões se unissem, esse seria o sinal de que o anticristo nasceu e que o mundo estaria perto de seu fim. Talvez, não tenha sido a toa que o criacionismo radical de Lewis tenha visto um macaco (o ancestral evolutivo do homem) como o papa negro que serviria como arauto da última batalha por Nárnia, quando a religião dos calormanos se uniria religião dos narnianos. É aqui que presenciamos Tash, o único oponente legítimo de Aslam. Em 2555, sob o reinado de Tirian, Manhoso (o macaco) propõe um culto unificado a Tashlam, marcando o início do fim previsto pelo Pai Tempo.





É importante notar que os calormanos já haviam sido explorados no livro "O cavalo e seu menino", o único inteiramente passado me Nárnia, no qual o menino Shasta foge da Calormânia rumo a Nárnia, sempre sendo seguido por Aslam. Lá descobrimo que a Calormânia é como um império otomano, cujo símbolo é uma crescente e os governantes são sultões sob abóbadas e mesuitas, cercados por areia e calor, turbantes e túnicas, cimitarras e arabescos. Só assim podemos concluir que talvez a Calormânia seja islâmica. E uma vez que para muitos, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo se trate da mesma religião cultuadora de um mesmo deus, Lewis poderia ter se sentido ofendido e observado aí um sinal do fim dos tempos, o apocalipse se aproximando na união dos ícones de Tash com Aslam. Mas, então, por que batizar o deus cristão com um nome turco?





Talvez, se a história fosse contada pelos calormanos, de fato Aslam e Tash seriam a mesma divindade, mas com símbolos e em culturas díspares. Talvez, assim como os turco-otomanos sincretizaram o cristianismo na península ibérica durante o século IX, os calormanos poderiam viver em paz regrada com os narnianos. Talvez os cavalos dos calormanos falassem e fosse respeitados, também. Nunca saberemos, pois Lewis não só acabou e reconstruiu o mundo de Nárnia nas terras de Aslam (o paraíso?) como contou toda essa história sob a ótica dos vencedores, como sempre acontece na história.




Penso que tudo teria sido diferente se Suzana tivesse participado desse último livro, mas isso fica para um outro post...

3 comentários:

Álvaro disse...

Comentar alguma coisa nesse texto seria chover no molhado Eli, mas parabéns pela hermenêutica afiada e pelas conclusões bem calculadas.
Impressionante, nunca tinha pensad em ler Nárnia dessa forma.

Miro Lakattos disse...

Muito bom o texto. Varias analises e pontos de vista que nao tinham sidos percebidos por mim.
Orald

Anônimo disse...

O Deus da Bíblia,é aquele que se revela como o Grande Criador de tudo, e Jesus Cristo a forma mais clara do amor dele, com sua criação. Não podemos comprovar se a Bíblia é verdadeira, mas ela tem a resposta para todas as perguntas importantes e é coerente em tudo.
Realmente todas as histórias são parecidas mesmo, pois Lúcifer é o maior imitador.
Deus te abençoe